“Nos telhados, uma pessoa fica com um sentimento de liberdade total,” conta-nos Kirill, suspenso de um braço, o seu corpo a balançar no ar.

O jovem de 19 anos de Moscovo abandonou os estudos e está a escapar à sombra do serviço militar. Ele escala os arranha-céus da cidade até ao topo, faz vídeos e posta fotos nas redes sociais.

Os seus amigos não o percebem. Acham que está a perder tempo e perguntam-se se ele não estará “vazio por dentro”. Kirill parece calmo, distante, até indiferente. Que respostas estarão escritas para ele, lá em cima nas estrelas?

Uma curta-metragem documental realizada e filmada por Geoffrey Feinberg
Produtores: Jelena Goldbach, Olga Korotkaya
Editores: Amanda Laws, Dominika Michalowska
Música: Julian Brau, Lorenz Fischer, Claude Debussy
Cor: Patrick DeVine
Tradução e legendagem: António Madeira, Eugênio Lloyd Santos,
Ana Catarina Tátá

Entrevista

Goeff Feinberg | 99.media

Geoff Feinberg Diretor

“Tenho medo de alturas, então fui atraído de imediato pela calma sinistra que havia nos olhos de Kirill enquanto fazia estascoisas arriscadas.”
  • Fale-nos um pouco de si, Geoffrey.


Sou um cineasta dos EUA. Desde que me lembro, sempre tive uma obsessão por filmes! Fui criado nos arredores de Londres, Inglaterra, e mudei-me para os EUA para tirar um curso de Artes Liberais com ênfase em Cinema. Após os estudos, viajei um bocado, fiz backpacking e trabalhei  em quintas, que se tornaram outros grandes interesses meus.

Documentários são um óptimo veículo para explorar todas as nossas curiosidades, e foi assim que descobri o rooftopping, e depois Kirill.

The Hanging 02 | 99.media
  • Como é que o projeto começou?


Kirill tinha postado várias fotos suas online, em cima de diversos telhados em Moscovo. As fotos começaram a circular, e assim que as vi, comecei a ter suores frios. Tenho medo de alturas, então fui atraído de imediato pela calma sinistra que havia nos olhos de Kirill enquanto fazia estas coisas arriscadas.

Era um contraste bizarro, como se ele não estivesse a fazer nada demais. Queria conhecê-lo e ver o que se passava detrás daqueles olhos. As fotos viralizaram, por isso fui até à fonte e consegui entrar em contacto com ele. Também estava muito interessado nesta cultura russa de roofing.

“Há algo de enigmático em Kirill. Há uma luta interna dentro dele, está a testar-se e a medir-se a si próprio.”
  • Como convenceu Kirill, sabendo que foi filmado a cometer crimes?


Não houve necessidade de convencer ninguém, e  Kirill e os seus amigos de roofing também não tinham medo de se meter em sarilhos. Fazer o que eles fazem é visto como uma infração bem pequena, dependendo da situação, então guiei-me por eles para sentir se devia estar a filmar ou não.

Procurar um prédio ao qual queremos subir e depois achar uma maneira de chegar lá acima, de qualquer maneira possível, faz parte da subcultura de roofing. Às vezes é só subir umas escadas e abrir uma porta destrancada. Outras vezes, são precisos outros meios.

O roofing é uma ramificação da exploração urbana, algo de que Kirill e o seu grupo gostavam, por isso há uma mentalidade parecida de sair e explorar lugares, seja com ou, na maioria das vezes, sem permissão. Se  Kirill ou os outros não gostassem que eu filmasse certas coisas que eles não queriam que fossem mostradas, eu não as teria mostrado.

The Hanging 01 | 99.media
  • Muitas das imagens que mostram situações perigosas foram fornecidas pelos próprios roofers, mas sente que se colocou a si próprio em perigo? Não teve medo de ser preso pela polícia?


Não, senti-me seguro com Kirill e o seu grupo de amigos. Eles já praticavam rooftopping há muito tempo  quando vim filmar, então senti que estava com um grupo experiente. Fora umas situações tensas, a possibilidade de sermos apanhados não foi tanto um problema. Ninguém se parecia importar!

A minha maior preocupação foi não deixar que Kirill se sentisse pressionado a fazer alguma “acrobacia” para mim, como pendurar-se dos telhados. Deixei isso claro desde o início. Como disse, as filmagens em que ele faz coisas perigosas foi ele próprio que as filmou, antes de eu o conhecer. O meu interesse principal era conhecê-lo, e não vê-lo realizar estas acrobacias para mim.

  • Fale-nos sobre a filmagem e as suas tecnicalidades.


Para ser discreto, eu andava com tudo numa só mochila. Filmei com uma câmara DSLR, tinha um gravador de som à parte anexado à sapata em cima, e às vezes trazia um microfone shotgun. Filmei quase tudo com uma câmara de mão, por issofoi pouco equipamento.

“O filme não está longe da realidade, com os eventos atuais. Podemos ver nele muito do que acontece agora.”
  • A personagem secundária deste filme é Moscovo em si. Kirill tem interesse por arquitetura e história. Qual é a relação dele com a sua cidade?


Kirill adora a sua cidade, e parece conhecer cada cantinho de Moscovo e toda a sua beleza escondida. É uma maneira bem únicade conhecer o local em que moramos: entrar escondido em locais de construção, escalar gruas e ver que edifícios novos estão a sererguidos, assim como subir aotopo de prédios bastante antigos.

Fiquei muito inspirado com o tanto que é possível apoderar-se de um lugar quando o realmente exploramos, da maneira que ele e os seus amigos fazem. Entendemos o quão poderosa é a sensação de ir a esses lugares onde quase ninguém vai. Estar lá em cima, diante de uma vista única e espetacular, é uma sensação de total liberdade. É um tanto inebriante. Ele conhecia a história de todos os lugares a que fomos, e contava-me tudo.

The Hanging | 99.media
  • É um pouco difícil entender Kirill. Ele critica a indiferença da sociedade, mas também não se parece com um ativista. Ele não faz o que faz por motivos políticos. Aceita críticas dos outros, mas também parece indiferente. Talvez vá para o exército… Talvez não. Parece repleto de contradições. Como é que o descreveria?


Tem razão. Quando as filmagens foram feitas, Kirill não era um ativista e nem muito motivado politicamente. Depois das filmagens, ele livrou-se do recrutamento obrigatório com uma isenção médica.

Há algo de enigmático em Kirill, há uma luta interna dentro dele, está a testar-se e a medir-se a si próprio… Acho que ele estava numa encruzilhada na vida dele quando filmámos. Tinha acabado de sair de uma boa universidade, e toda a trajetória de vida definida que vinha junto com ela. Ele estava confuso, sem saber para onde ir. Muitas vezes, parecia pensativo, a tentar orientar-se. Nesse processo de descoberta pessoal, pareceu-me que a única coisa que ele valoriza mesmo é a liberdade de explorar e ver o que há por aí à sua espera. É por isso que ele parece um pouco desconcertante. Ele é um rapaz de 19 anos a tentar encontrar espaço para descobrir o que quer, mas o exército e o recrutamento obrigatório são um perigo real que pode roubar-lhe esta liberdade a qualquer instante. Não acho que ele seja indiferente, há bastante conflito a acontecer ali dentro.

Quanto a política, é um assunto complicado, porque na minha opinião, mesmo que ninguém o diga em voz alta, o pessoal é o político. A forma como Kirill escolhe viver a vida: o facto de que ele anda por aí em cima de telhados, a mentalidade de estar sempre a explorar, tudo isso mostra o quão livre e aberto às coisas ele é. Para mim, isso é político, tendo em consideração as opções que ele tinha: ou o exército ou a faculdade. Ele decide achar o seu próprio caminho, independente destas.

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  • O seu filme foi produzido em 2014, e ecoa com eventos actuais, uma vez que, na altura, Kirill estava com medo de ter que ir para o serviço militar. Em 2022, milhares de jovens russos fugiram do país para escapar de serem enviados para lutar na Ucrânia. Como é que analisaria esta comparação?


O filme não está longe da realidade, com eventos atuais. Podemos ver nele muito do que acontece agora. O filme foi feito em 2014, logo após a Rússia anexar a Crimeia, algo que foi bem alarmante na altura. Era isso que estava no ar enquanto filmávamos. Um integrante do grupo até fez roofing em Kiev durante a Revolução da Dignidade.

O facto que Kirill conseguiu uma dispensa médica do serviço militar foi um grande alívio. Tenho estado a acompanhar a guerra de perto, e sinto-me horrível a pensar nesses jovens que foram apanhados, alistados e atirados, de repente, para o meio de uma guerra. É uma tragédia tanto para a Ucrânia como para os rapazes russos, jovens e de mente aberta.

Alguns amigos de Kirill na comunidade de roofing, com os quais eu cheguei a filmar, fugiram recentemente do país para a Turquia e outros lugares, com medo de também serem alistados. Estou em contacto com alguns deles, e foi uma decisão enorme para eles fugir de repente, abandonar as suas vidas até este desastre acabar. Tem sido como uma bomba que explodiu nas vidas deles. É uma situação horrível.

  • Como anda Kirill hoje?


Ele está bem. Falamos de vez em quando, falo com ele sobre tudo o que está a acontecer. Ele anda a arranjar trabalho com fotografia e fabricação de móveis. Ele é antiguerra e, quando a guerra começou, saiu às ruas para protestar. Acabou detido durante 8 horas.

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“NÃO À GUERRA”

  • Quais são os seus projetos atuais?


O meu foco está num projeto que estou a editar, é um documentário longa-metragem no qual estou a trabalhar já há algum tempo. Espero terminar em breve!


Gostei bastante de “Connected”. É um retrato muito bonito de um casal que passa um dia em pistas de esqui na Polónia, sendo um deles cego. Adoro como tudo acontece num só dia, e através das suas atividades conseguimos ter uma noção do quão profunda é a relação entre eles. E fez o meu coração disparar quando eles começaram finalmente a esquiar, credo! Faz-nos sentir visceralmente como seria estar ali, a fazer aquilo enquanto cego; como seria assustador e incrível.

Tungrus” também foi muito engraçado, ri-me em voz alta muitas vezes! O pai que queria replicar as memórias de infância era uma pessoa muito esquisita e divertida. Uma ótima personagem. Mas a realidade no final foi tão triste, e claro, faz-nos pensar na nossa relação com o que comemos, um problema enorme no nosso mundo, e tem um ângulo bem interessante sobre isso. E a entrevista com o realizador desse filme também é ótima, recomendo muito!

  • Uma palavrinha sobre a 99 e sobre adaptar o seu filme em várias línguas.


É tão giro ver que o filme vai ser traduzido para várias línguas! Esta probabilidade de levar o filme a uma audiência maior é muito entusiasmante. Que oportunidade incrível que a 99 oferece para os filmes no site!

O filme só existiu em russo com legendas em inglês, durante tanto tempo. Inclusive, recentemente enviei o filme a uns novos amigos meus que falam apenas italiano, então o facto de que agora vão poder ver o filme e entendê-lo é um presente enorme! Muito obrigado!

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